Sonho pelo dia em que seja convidado a ir a um casamento de elementos da Frente de Esquerda Revolucionária (FER).
Estou a ver-me a entrar com o meu fato-macaco de operário impecavelmente lavado e engomado, capacete das obras debaixo do braço e chave-inglesa no bolso da frente, na cantina de uma grande fábrica dos arredores de Lisboa, e sentar-me num dos grandes bancos corridos, do lado dos convidados da noiva ou do noivo, preparando-me para ouvir as grandes palavras ditas pelo chefe do partido em cima de um caixote virado ao contrário, à frente de toda a gente. Estou a ver toda a gente a recitar tiradas inteiras de ‘O Capital’ e do ‘Manifesto do Partido Comunista’ do Marx e do Engels, e a terminar cada leitura de punho esquerdo erguido e a gritar ‘Para a luta, camaradas’! Os noivos a jurarem eterna fidelidade entre eles e ao partido, a apoiarem-se mutuamente na saúde, doença, greves, manifestações e prisões. A dizerem um sim emocionado!
Estou a ver-me a atirar porcas e parafusos aos noivos quando saíssem da igreja, a desejar-lhes bons aumentos salariais e a perguntar-lhes onde iriam passar os dias de greve que iam fazer nas duas semanas seguintes. “Vamos ver um gulag à Russia, camarada Ricardo, e visitar antigas unidades comunitárias de cultivo de trigo no Uzbequistão!”
O copo de água num grande jardim municipal, com bancos e mesas corridas, toda a gente numa grande festa, enquanto que uns quantos convidados mais voluntariosos se encarregavam de assar umas febras e uns entrecostos no grelhador, distribuir umas ‘mines’ e uns jarros de vinho carrascão da cooperativa. Tudo isto acompanhado por uma velha cassete com a Filarmónica do Exército Vermelho e a Guarda Nacional Livre da República Democrática Alemã a despejarem hinos clássicos do estalinismo. A determinada altura, um dos convidados emociona-se mais e começa a cantar “De pé, ó vítimas da fome / Famélicos da Terra sem trabalho…”, e toda a gente se põe de pé, lágrimas a afloraram-lhes aos olhos, a mão direita a agarrar o copo de vinho junto ao peito e o punho esquerdo erguido. Os convidados mais velhos falam de histórias de fuga à Pide, às cargas da Guarda e de quando montaram aquele piquete de greve na fábrica de lã da Covilhã em 1954, e os mais novos dos blogs que têm na internet, nas fanzines que fazem circular no Bairro Alto e no que significa ser artista em Portugal hoje em dia.
Lá mais para a frente, os noivos cortam duas grossas fatias de pão de Mafra e abrem a pista de dança ao som de Kusturica e a sua No Smoking Orchestra – ao final da noite, será o som de Sex Pistols que vai dominar a pista. Mas, por enquanto, ainda é altura do brinde aos noivos, o desejo de que sejam muito felizes, que consigam levar os ideias do partido a todo o Mundo, que lutem pela cooperativização da agricultura na América Latina e que ajudem a espalhar a palavra de Marx e Engels por África – ah, e que não se esqueçam de visitar os primos que vivem em Ferreira do Alentejo, que por lá a nossa gente e ideário são fortes. Depois, a noiva atira o seu martelo para entre as meninas casadoiras e logo ele é disputado – afinal, quem o agarrar irá ter a sorte de fazer um discurso inflamado no Terreiro do Paço.
Em seguida, os noivos apanham o amarelo da Carris (cumprimentando o camarada condutor) e vão passar a noite de núpcias a um sítio qualquer, que isso é lá com eles e ninguém tem nada a ver com isso. Os convidados vão desmobilizando, arrastando-se apenas por lá uns quantos que ainda vão repetindo sempre, sempre as mesmas histórias com um copo de vinho da cooperativa na mão. Depois, os últimos resistentes apanham boleia até ao Bairro e o jardim fica deserto. A cerimónia de casamento acabou!